Gaivotas e o Mar
- idadecronica
- 16 de fev.
- 3 min de leitura
Atualizado: 16 de mar.

Na beira do mar é quase mandatório esperarmos o pôr do sol. Recomenda-se aproveitar o espetáculo que serena a alma, despertando o olhar para cores que não vemos no cotidiano cinza das obrigações. Nunca devemos perder a chance de ver o sol ir descansar.
Segui a cartilha. Fui conferir o espetáculo depois de aproveitar um dia calmo com a família e amigos especiais. Laranjas e azuis em tons variados, despertaram em meu entorno as mais variadas reações: primeiro as selfies, em seguida orações, abraços, imóveis contemplações. Depois de um tempo observando o que se passava ao meu redor, me perdi observando gaivotas. Pra mim, de repente, o vôo livre e ritmado por reviravoltas inesperadas tinha beleza igual, talvez maior, que a despedida do sol entre mar e montanhas.
Solitária, uma gaivota iluminada por resquícios do sol prendia meu olhar e pensamentos. Enquanto a ave plainava acima do oceano, eu ficava ali, presa na simbologia que a imagem me trouxe e em lembranças de outras vezes que avistei cena semelhante. Engraçado como sempre me encanto com a sintonia das gaivotas e o mar.
Em algumas culturas a gaivota é vista como mensageira entre o homem e o espírito. Em outras, mais céticas, é puramente a conexão mais óbvia entre a imensidão das águas e do céu. Símbolo absoluto de liberdade, em meus pensamentos, naquele momento, significava o paradoxo entre viver livre ou buscar a segurança que menos independência nos traz. Comecei a me questionar se a liberdade física e instintiva daquela gaivota encontra fragilidades semelhantes à questão tão humanamente complexa como a busca por liberdade pessoal versus a escolha por aquilo que nos mantém menos ansiosos, temorosos e, por isso, seguros.
Devemos dizer todos os nãos que queremos ou abrir concessões eventuais a favor das vontades de quem amamos ou precisamos conviver “harmoniosamente”? Investimos em mais um curso de aperfeiçoamento profissional ou guardamos grana para um pequeno negócio quando nossa idade avançada nos tornar menos empregáveis? Fazemos aquela viagem sozinhos e sacrificamos os planos da reforma do quarto dos filhos? Solteiros ou casados? Moramos sozinhos ou com a família? Empreendemos ou permanecemos limitados ao regime trabalhista e suas regras ultrapassadas? E filhos? Arrumamos logo três ou nenhum?
Em nossa sociedade, nesse mundo cheio de possibilidades, desejamos pela liberdade para explorar quem somos, nossa criatividade e limites. Mas esse desejo nos leva de encontro a incertezas, ao medo de não nos sentirmos estáveis quando a adrenalina passa. E ela sempre passa. Liberdade demais assusta. Liberdade de menos, entedia. Ausência de restrições bagunça a vida. Excesso de regras, nos aprisiona. Ser dono do próprio destino parece que impõe ser capaz de controlar os limites entre voar e saber que horas pousar de volta ao ninho. E sugere também que devemos ter a habilidade máxima de resistir ao fato de que, durante toda a vida, precisaremos fazer as duas coisas repetidas e repetidas vezes. Voar sem perder o caminho de volta, ficar sem desistir de voar amanhã. Voar hora sozinho, hora junto. Ficar junto, hora sozinho.
As gaivotas, intuídas pela sabedoria da natureza, migram incansavelmente para regiões com climas mais amenos para buscar abundância de alimentos, para sobreviver às ameaças do tempo. Elas frequentemente constroem seus ninhos em locais altos como falésias para se proteger de predadores. Ao voar sobre o mar, elas equilibram a liberdade de explorar áreas extensas com a necessidade de segurança, retornando facilmente aos ninhos que construíram alto por proteção. Se assim como nós, uma gaivota, navega entre a liberdade a necessidade de segurança, por qual motivo, para a ave, tudo parece tão mais simples? O sol se pôs, não encontrei uma resposta
Antes de dormir, um pensamento me atravessou... Eu buscava uma resposta simples e convencional para a liberdade segura daquela gaivota. Decidi que o motivo pelo qual o pássaro que brilhava diante de mim voava lindo, como se não houvesse angústia em suas escolhas, era porque voava sempre, resiliente e certo de que no fim do dia saberia onde pousar. Peguei no sono e, no meio da noite, a sede costumeira me acordou junto com um salto de lembrança. Um verso de Mário Quintana quase me engasgou: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”.
A resposta certa então chegou. O vôo da gaivota sobre o mar é livre e seguro, num equilíbrio perfeito que nos encanta sempre porque seu encanto está no quanto a ave desconhece a insatisfação inerente, indefinida e inominável do ser humano.
Idade Crônica - Leitura para mulheres de 40 anos +
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