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Porque antes de investir num livro, você precisa saber se ele te irrita ou te abraça.

Sabe aquele momento em que você abre um livro só pra dar
“uma olhadinha” e quando vê já está envolvida, sentindo um calor
no estômago? Pois é. Essa amostra existe pra isso: ver qual sensação
"Idade Crônica" desperta em você. 

Vai lá. É logo abaixo! 
Leia com carinho.
Ou com ceticismo mesmo — o importante é ler.

PREFÁCIO

 

Desde criança, as palavras têm o dom de me organizar. Os pensamentos soltos que se passam em minha cabeça encontram mais sentido numa cadência de frases em ordem. Escrever alivia, serena minha alma, acompanha minhas transformações. Com o passar dos anos e o inevitável acúmulo de bagunças dentro de mim, escrever parece ter se tornado uma necessidade. Era algo que fazia de forma íntima: um movimento em solidão e segredo.

Ideias de crônicas (uma das minhas formas literárias preferidas, apesar de indefinida para muitos) passaram a surgir, de forma inesperada, enquanto dirigia do trabalho para casa, antes de pegar no sono, em momentos de sentimentos confusos. Eu escrevia e então esquecia, porque tudo parecia resolvido depois do último ponto final.

Rubem Alves, meu escritor favorito, uma vez escreveu: "A alma é uma borboleta... Há um instante em que uma voz nos diz que chegou o momento de uma grande metamorfose..." Passar a organizar meus textos, escrevê-los com mais frequência foi o início de uma transformação. Agora, decidir torná-los públicos significa que eu já posso voar, que criei asas e, mesmo me sentindo uma impostora, sim, alguma coragem falou mais alto. A mesma coragem que enxergo em muitas mulheres que hoje me inspiram, compartilhando ideias, dores, aprendizados, lutas e absoluta sabedoria ao lidar com um universo que pouco nos favorece. Coragem também que, devagar, vejo em homens que já conseguem ver em nós a complementaridade cúmplice e honesta que não anula ninguém, não compete e nem fragiliza.

 

Esse ímpeto de ousadia rompeu o casulo especialmente quando, na véspera dos 40 anos, eu me vi desenquadrada nas roupas que vestia, nas ideias que sustentava, na forma como aceitava, sem questionar, as oportunidades que se apresentavam para mim naquele momento. Estava óbvio que eu vivia uma crise de meia-idade, mas nada claro como eu deveria me dispor aos próximos passos sem jogar tudo para o alto, sem perder a cabeça, já que a vontade de mudar completamente de rumo tinha invadido meus pensamentos. De novo, escrever garantiu minha sanidade, mesmo havendo muitos que passaram a achar que minha reputação foi prejudicada por atitudes mais honestas comigo mesma terem se tornado mais recorrentes.

Alguns anos se passaram e sigo mais atolada na crise do que achei que estaria. Diziam que passaria logo, mas não. Hoje vivemos, eu e a crise, uma boa amizade. Ela deixa claro que talvez permaneça comigo para sempre e eu a deixo cada dia mais confortável ao meu lado.

As próximas páginas são um registro bastante honesto de como é chegar à meia-idade acreditando que existem ainda muitos passos pela frente, mas cheia de contradições. Um registro particular que decidi tornar público com a esperança de trazer a qualquer outra mulher, ou homem aberto a nos compreender melhor, momentos cotidianos que podem gerar identificação, especialmente por serem também um indicador cultural e social do nosso tempo.

Somos muitos aos 40, 50, 60 ou mais e esse gráfico é ascendente. Espero que você, leitor, encontre nas próximas páginas o mesmo conforto que encontrei ao escrevê-las e que alguma inspiração possa levá-lo a ressignificar dias ordinários, esses que, não parecem, mas são os mesmos que contêm nossa vida inteira, estejamos nós em qualquer contagem do tempo.

GUARDA ROUPA 

Eu acordei decidida a mudar todo o guarda-roupa. Já não me reconhecia vestindo aquela coleção de peças senhoris, embora tivesse acordado mais velha e há poucos dias de completar os 40. Idade essa que batizei ironicamente como idade do meio, a idade crônica. Despertei de tanto ficar dias sem dormir, se bem que foram anos: um nobre período em que eu percebia, mas ignorava conscientemente que meu corpo estava fora de sintonia com minhas ideias e vontades. Só eu? Que nada! Certeza que havia muitos decididos com a mesma veemência a ignorar seus descompassos para manterem a nobreza das escolhas declaradas e das promessas feitas.

Embora eu tivesse pressa, a troca de figurino foi preciso fazer aos poucos, na medida em que o corpo metabolizava coragem e perdia a gordura de anos de acomodação. Bem devagar, novas peças iam chegando... uma t-shirt colorida e amizades mais leves, um decote mais aberto e olhares que nunca havia reparado. Logo em seguida, um tênis com brilho trouxe junto a abertura para uma programação livre de antigos preconceitos. O perfume novo borrifava vontades de não repetir o trajeto por aquela rua conhecida ou aquele trabalho que não mais inspirava. Eu estava gostando mais de mim, embora algumas pessoas não.

Meu guarda-roupa prenunciou a eclosão de uma crise de meia-idade, antecipando a sensação de que o cotidiano, mesmo sendo igual, não seria mais o mesmo. Eu estava mudando de roupa como se fosse de casca.

Fico pensando aqui se uma troca inteira de guarda-roupa soa como fútil e banal em relação à profundidade das reflexões e reaprendizados de uma crise de meia-idade. Não deveria ser mais profunda? Não. Sabedores saberão que é mesmo assim... nas somas de momentos bobos que as maiores transformações acontecem. E quem vive há mais tempo os anos após os 40 deve saber melhor ainda que as mudanças seguem sorrateiras e cotidianas. E sabe, principalmente, que num determinado estágio dessa evolução, você se liberta muito rapidamente da dúvida ou angústia de parecer fútil, banal ou de receber qualquer outro adjetivo desimportante.

Na idade crônica, importa muito o seu guarda-roupa, importam os amores duvidosos, os caminhos diferentes e aqueles sabores que ainda não provamos. Opiniões? Esquece! São mesmo desimportantes!

FELICIDADE URGENTE  

Estão vendendo felicidade por aí. Você encontra em todos os lugares, formas e cores. O catálogo está online e as formas de pagamento são diversas e algumas até mesmo questionáveis. Felicidade urgente! Em promoção! Ser feliz virou meta a ser alcançada e todos parecem tão bem acumulando formas de viver dias exultantes. Gente perfeita, bonita, bem-sucedida e, claro, na superfície. No raso da piscina onde a água é mais quentinha e não requer braçadas fortes.

Eu ando feliz… e triste também. Tem dias que amanheço deplorável, me alegro no meio da tarde e adormeço assim. Tem dias que é só tristeza mesmo. Já teve uma semana que foi só alegria! Ser feliz me parece um exercício que demanda prática, uma incansável decisão. Não descobri ainda como ter felicidade adquirindo posse. Entendo como algo que se conquista e que jamais será permanente.

Tristeza e felicidade fazem parte do meu cotidiano. Enquanto o primeiro sentimento é inevitável, o segundo associo a concepções e escolhas. É um sentir opcional. Eu diria que posso escolher ser feliz, mas que essa tarefa significa trabalho, resistência, coragem e uma dose exultante de atrevimento. Significa me deixar triste também em alguns momentos para que eu possa encontrar sentidos, perceber o que me deixa mais leve e aquilo que, para mim, são as coisas boas e as pessoas que me preenchem. Felicidade, portanto, não é algo normativo como ando vendo por aí. Está mais para uma circunstância, um estado que se adquire, mas passa. É percurso, e não destino.

Algumas pessoas nunca serão felizes, outras rapidamente saberão tirar proveito máximo do que se tem e do que se conseguiu, sem sentir peso demais pelo que não se alcançou. A sabedoria da felicidade está aí: aproveitar ocorrências eventuais que fazem valer uma vida. Guardar lembranças que arrebatam.

Estranho muito esse nosso tempo onde ser feliz é tão obrigatório que aparentar felicidade já resolve a questão. Parece que todo mundo já chegou lá. Estranho porque a felicidade não cria raízes, ela passa despretensiosa e logo some. E não estar feliz hoje dá mais sentido para a própria felicidade. Permite o reconhecimento verdadeiro do que nos faz feliz.

Aparentemente é generalizada a posse da felicidade. E todos também parecem igualmente felizes em arroubos e motivos. Já experimentei felicidade rasa. Não gostei! Sabe o que mais eu acho? No número 85 da rua Oceano Profundo, dentro de casa, quando falta luz, falta internet e a janela está aberta é que a felicidade entra, inunda a sala nos convidando a imergir. É nessa hora que quem possui status de feliz dorme no ponto, que essa gente distraída por alegria falseada bobeia.

foto do livro Idade Crônica de Rejayne Nardy
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