Mudar de Faixa
- Rejayne Nardy

- 29 de out.
- 2 min de leitura
Outro dia, no caminho pro trabalho, vi um motoboy bater no capô de um carro. Não porque o motorista errou. Mas porque ousou existir fora do espaço imaginário que o “colega” reservou pra si mesmo no mundo. Então, o tal motoboy, precisou desacelerar durante incríveis... dois segundos. Dois. Uma tragédia!
O motorista à minha frente havia sinalizado — com seta, com a mão, com tudo o que a cartilha manda — que ia mudar de faixa. E eu, que ainda cultivo o hobby de acreditar que gentileza existe, reduzi a velocidade para ele passar. Mas aí veio o velocista das duas rodas, atrasado pro apocalipse, e por ter sido necessário frear para a mudança de faixa do carro, acabou desviando e deu um murro indignado no capô, como se dissesse: “Como ousa mudar de caminho na minha presença?”
E eu fiquei pensando: por que a gente desaprendeu a esperar? Por que acreditamos que tudo e todos têm que se moldar exatamente ao nosso trajeto?
Porque, claro, se eu acordo atrasada, o elevador é vingativo, a culpa é do Uber que não acelera. O semáforo está errado...
Se o pedido demora, o problema é o entregador que resolveu ter fome ou dignidade no intervalo.
Se o relacionamento não engrena, é porque o outro não preenche o requisito principal: sobrevive quem supre minhas carências em até 24 horas.
Viramos uma sociedade que exige perfeição… do outro.
Que se incomoda quando alguém respira mais devagar, ou mais depressa.
Que confunde mudar de opinião com traição.
Que torna diferença em ataque.
Que troca de faixa e estabelece uma afronta.
E aí moldamos um mundo imaginário como se ele existisse para nos servir. Só que o mundo, de verdade, nos lembra diariamente que existem outros mundos convivendo com a gente — simultaneamente. Outras dores, outras rotas, outras pressas.
No mundo real, o que de fato deveria prevalecer é que esperar não é humilhação e desacelerar não significa derrota. Mas ninguém quer mais aceitar que as vias não são nossas — são de quem passa. E nessa vida, todos passamos.
No fundo, me parece que seguimos assustados com qualquer mudança do lado de fora porque temos pavor de mudar do lado de dentro. É impressionante como temos mais opinião do que argumento. Discutimos pra vencer, não pra entender. Soluções? Só se for pra provar que eu estava certo desde o início.
A vida seria mais leve se a gente entendesseque mudar de caminho não é ofensa — é só movimento.
No fim, somos todos natureza. E a natureza só flui em equilíbrio. Assim como no trânsito. Uma hora a gente se encolhe pro outro passar, em outra, a gente é que precisa de espaço. Não funciona na base da buzina, do empurra-empurra, da pressa como ameaça.
O rio não briga com a pedra: ele contorna. Flui. Segue.
Talvez seja isso que esteja faltando pra gente: menos murros simbólicos no capô alheio. Mais fluxo. Mais consciência de que somos trânsito e que o movimento do outro não é o fim do nosso caminho. É só a vida acontecendo — lado a lado.
A faixa de trânsito que achamos que é nossa tem o mesmo dono que o mundo inteirinho: nós todos, só enquanto passamos.



Comentários